quinta-feira, 14 de janeiro de 2016





                                                            RETORNO



                   Já estou em casa, há duas semanas. Difícil. muito difícil.
                   Sempre que volto de viagem, quando desarrumo as malas, já vou guardando tudo nos lugares. Desta vez... esqueci os lugares. Onde guardo isso? Onde coloco aquilo? Meu Deus, o que eu faço com isto?  Demorou pra lembrar!
                   Esqueci que dia passa o caminhão do lixo, esqueci onde é o esconderijo da chave da cozinha, esqueci a minha senha bancária, esqueci o número da placa do meu carro... e assim por diante. Passei uns dez dias dormindo muito, quando acordava, arrumava as coisas e relembrava como era o meu dia a dia. Agora, duas semanas depois, acho que já recuperei a maior parte da memória e não tenho mais tanto sono. Mas estou achando a vida urbana muito complicada.
                   Ainda me lembro de algumas coisas de lá., vou escrevê-as, antes que me esqueça.

                                                                     ***

                   Natal. Neste conjunto de prédios enormes, só nove pessoas. Todos os alunos e alguns professores, foram para as ilhas Grenadinas. Na RVA,  só ficaram Stina e Jesper,  diretores, Else Marie,  encarregada da promoção, David,  encarregado do hotel, quatro hóspedes e eu.
                   Se fizesse sol, eu teria passado os dias na praia. Mas choveu e ventou muito. Não deu pra ir à praia, nem pra ver a lua cheia e as estrelas. Silêncio!
                    A. noite de Natal foi chuvosa. Else Marie e eu arrumamos a mesa, com toalha, guardanapos, pratos todos iguais, garfos e facas, pelo menos parecidos, copos de vidro e flores! Ficou bonito.  Henning, um hóspede, fez a comida: carneiro e frango assados, com batatas e salada. De sobremesa, uma espécie de canjica, com uma calda de maracujá. Not so bad.
                   A mesa era assim: Henning, Stina, Else Marie, David inglês, uma hóspede vincentiana cujo marido estava viajando, um casal de hóspedes alemãs lésbicas, Jesper e eu. A "ceia" de Natal foi servida às sete e meia da noite...
                   Stina disse que passar o Natal com gente desconhecida era muito interessante... eu fiquei só olhando. Depois, ela sugeriu que nós nos apresentássemos e fizemos isso. Igualzinho nos "meetings":      
                   - Eu sou Lina, do Brasil, sou advogada aposentada, estou aqui, porque queria trabalhar com população, fiz o curso sobre o aquecimento global e recebi meu certificado hoje. - perdi a conta de quantas vezes fiz esse discurso, com a diferença de que antes, não havia recebido o certificado.
                  E todos fizeram o mesmo. Eu só olhando. Difícil achar um assunto pra iniciar a conversa. Aí se lembraram de falar sobre a comida. Depois dos bem educados elogios, as alemãs perguntaram se a salada era da horta. Então, Stina sorriu feliz! Sim, todas as verduras eram da horta e a horta era toda cultivada sem pesticidas, de acordo com os preceitos da permacultura... pronto. Estava definido o assunto. Falaram de permacultura o resto da noite.
                   Ai meu saco! Não aguento mais esse papo! Aproveitei para comer bastante. Carne sem pimenta! Maravilha! Mas o carneiro estava muito duro, quase não dava pra cortar. E o frango sem sal. Eu odeio canjica, mas comi a sobremesa, afinal a calda de maracujá disfarçava o gosto.
                   Comi quieta e depois fui lavar os pratos. Natal interessante.
                   Ainda bem que fui cantar para os velhinhos no asilo e para as mulheres, na prisão! Foi esse o meu espírito natalino.

                                                                    ***

                   Contagens. Tudo é racionado, contado literalmente.
                   Os encarregados da limpeza, contam quantos rolos de papel higiênico são usados, por dia.
                   A luz dos banheiros dura cinco minutos. Depois a gente tem que fazer ginástica na frente do sensor . Se estamos no meio do número dois, temos que acabar no escuro, se estamos ensaboados, temos que sair do chuveiro e molhar todo o chão, para acender a luz.
                    Num "common meeting", sugeriram 45 segundos de água para molhar, pausa para ensaboar e outros 45 segundos para enxaguar. Nos dias em que falta água, sugeriram banho de canecas, mas faltou dizer quantas canecas...
                    Laurita era encarregada de contar as galinhas no galinheiro! Tinha que ter quarenta e quatro. Um dia, ela não conseguiu contar, disse que tinha quarenta e quatro e no dia seguinte acharam duas galinhas mortas. O cachorro do vizinho fez a festa. Laurita ficou se sentindo culpada.
                    Então, deram a ela outra função: a de colher verduras para a salada. Como o espinafre estava acabando, ela tinha que contar quantas folhas colhia!
                    Durante as refeições, ovo, bolinhos, pedaços de carne ou de alguma torta era sempre um por pessoa. Só podíamos repetir, depois que todos comessem. Aí, tinha gente que comia correndo, para poder repetir, antes que a comida acabasse. Depois, tinham dor de estômago.
                    Mas era assim! Felizmente, com exceção dos rolos de papel higiênico, todos perdiam as contas. E o espinafre quase acabou. Restaram apenas folhinhas bem novinhas que não dava pra comer.
                                                                    ***

                     Love.  Stina e Yesper tem um cachorro. Pastor alemão. Muito simpático, chamado Milo. E cuidam muito bem dele. Mas tratam mal todos os outros cachorros que aparecem por lá.
                     Um dia, apareceu um vira lata bem magro, e bem brincalhão, desses tipo "cão sem dono" que abana o rabo pra todo mundo, na esperança de achar um dono. E achou vários, todos os alunos gostaram dele. Mas os diretores não. Alimentamos o cachorro durante uns dias, na esperança de que autorizassem a ficar com ele, mas o máximo que conseguimos, foi que a adoção do cão fosse assunto de um "common meeting".
                      A discussão demorou mais de duas horas. Walid, o jordaniano disse que assumia a responsabilidade de educar o cachorro.   Disse também que se o dono aparecesse, nós entregaríamos o cão, mas que nós cuidaríamos dele enquanto ele estivesse aqui. Quando Stina percebia que se o assunto fosse colocado em votação, ela ia perder, dizia que tinha mais uma dúvida, e a discussão se arrastava por mais tempo, com muitos argumentos de ambas as partes. O principal argumento da Stina era que os atuais alunos vão embora depois de seis meses e não sabíamos se os próximos assumiriam essa responsabilidade.
                       Eu estava quieta, quase dormindo, para disfarçar minha indignação, diante de tanta mesquinharia. Afinal o que custaria manter mais um cão? Até que não aguentei.
                       - May I say something? - depois do silêncio, eu disse: I have a proposal. We all take care of the dog while we are here. When Walid leaves, he promises to find an owner for it.
                       Walid concordou e a proposta foi votada e aceita pela maioria.  Ufa! Já eram quase onze horas, Pra quem acorda às seis e trabalha pesado durante todo o dia, era muito tarde.
                        Foi uma vitória! Ficamos todos felizes.
                        Depois de muitas consultas a todos os colegas, Walid batizou o cão de Love!

                                                                    ***
                   
                      Ontem fui ao médico. Todos os índices de glicemia, colesterol, vitamina D, triglicérides perfeitos. E eu já ganhei dois quilos. Daqui dois dias, vou ao ortopedista. quero saber exatamente o que aconteceu com minha perna.

                                                                   ***

                        Pouco a pouco, estou recomeçando minha vida de aposentada. E já estou pensando em ir a um outro programa de trabalho voluntário. Desta vez, no Brasil. Mas antes, vou sossegar o facho aqui em são Paulo, por um tempo, enquanto junto dinheiro para a próxima aventura.
                        Agradeço a todos que leram minhas histórias e especialmente àqueles que comentaram.
                        Prometo voltar a escrever toda vez que tiver alguma coisa interessante pra contar!


                        Voce já pode dizer eu li na tela da
                                                                                    Eulina

                                                      











     







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