quinta-feira, 14 de janeiro de 2016






                                               LEPTOSPIROSE



                    Estamos no meio de uma fazenda. Num prédio mais afastado funciona um hotel, para ecoturistas. No centro, fica o grande prédio da escola e mais  perto da praia fica o "diving center". Podemos dizer que é um "resort", ao mesmo tempo rural e praiano.

                    Pois bem. Tudo isso custa manter. É preciso cuidar da horta, dos cavalos, das galinhas, dos porcos, do material de mergulho.  E preciso cortar a grama e cuidar da cozinha e da limpeza. Para o hotel e o "diving center", existem funcionários contratados que cuidam da limpeza e manutenção, mas o prédio das escolas é inteiramente limpo e mantido pelos alunos. Logo que chegamos, recebemos uma área de limpeza e as instruções de como limpar. E todos os dias das sete e meia às oito da manhã, trabalhamos em nossas áreas de limpeza.
                   Não é suficiente. Teias de aranha crescem num piscar de olhos. Privadas entopem, Muitos alunos levam comida para os terraços e deixam pratos sujos de restos. Temos diariamente sapos baratas e morcegos. Todos tem trabalhos no campo, no jardim, ou vão à praia, e não há meios de limpar os pés sujos de barro. E sempre tem os preguiçosos, que não limpam suas áreas todos os dias, ou limpam mal.
                     Eu acho que, para manter tudo limpo, seria preciso contratar mais pessoas, ou usar produtos mais eficientes. Mas o máximo que podemos usar é vinagre. Pra tudo. Tudo se limpa com vinagre. Inseticida é proibido, raticida, nem pensar. Então, temos que conviver com uma infinidade de insetos, baratas, aranhas, sapos, lagartixas e...ratos.

                      Uma das colombianas começou a sentir formigamento nas mãos. Dirigiu-se ao encarregado dos primeiros socorros. Deram-lhe um anti histamínico. Não melhorou. O formigamento cresceu e ela passou a não sentir mais as mãos. E logo em seguida começou a ter movimentos involuntários com as mãos e os braços. Era preciso um atendimento de urgência, pois estava piorando rapidamente. O professor, "team leader" como chamam, quis chamar um taxi para levá-la ao pronto socorro de Chateaubelair. Não havia, na escola, verba pra isso! Enfim, um  engenheiro, que também é colombiano, e que é apenas um hóspede do hotel,  levou-a no carro da empresa, para a qual trabalha.
                    No pronto socorro de Chateaubelair, o professor mostrou o remédio que ela tinha tomado, e imediatamente, ouviu  uma bronca!
                    - Como! Quem receitou esse remédio pra ela? O remédio está vencido! - em seguida, deu-lhe calmantes e mandou-a de volta.

                    Ela passou o dia dormindo, sob o efeito dos calmantes. Na manha seguinte, estava pior. As mãos e os braços retorcidos e as pernas também apresentaram movimentos involuntários.         Novamente precisava de condução, novamente a escola não tinha dinheiro. Teve de pagar o taxi, com seu próprio dinheiro. O professor levou-a ao hospital em Kingston. onde permaneceu por tres dias, tomando injeções de calmante, soro e anti térmico, porque tinha muita febre. Enquanto isso, fez vários exames para investigar o que tinha. As despesas do hospital correram por conta da paciente. A escola não dispõe de nenhuma verba pra isso.

                   Enquanto isso, na escola, nada acontecia. Nenhuma informação, nenhuma notícia, nada! Não tivemos aulas, porque nosso professor estava com ela no hospital Queríamos saber como ela estava! Um dia, eu entrei na sala de uma das diretoras e pedi notícias.
                    - Why are you asking me? She is part of your team, must be in the class with the other students!
                    - Because she is in the hospital! - falei indignada.
                    - Oh, I don't know, ask someone else - e continuou a escrever no computador, como se nada estivesse acontecendo!
                     Eu saí de lá indignada! A menina está há dois dias no hospital, e ela não sabe de nada, nem se interessa em saber, continua no computador, impassível!
                     Esse sentimento de indignação foi crescendo, não só em mim, como em todos os outros colegas e só agravava com a falta de notícias.

                     As colombianas estão aqui para desenvolver um projeto de filtragem de água servida, que vale pontos para a sua graduação  no curso de Engenharia Ambiental. Foi feito um convênio entre a RVA e a universidade da Colombia.
                    Logo que chegaram, quando souberam que iam ter que fazer limpeza, que o quarto tinha goteiras e que o colchão tinha ninho de baratas, escreveram uma carta para os professores da Colombia relatando a situação e mostrando fotos das goteiras, dos banheiros com paredes descascadas, do colchão...  Uma delas, justamente a que ficou doente, trocou de quarto e ganhou um colchão novo. E todos os outros alunos tiveram uma sessão extra de "democracia", onde fizemos todas as queixas sobre as acomodações e ouvimos da diretora quais providências seriam tomadas. Estamos aguardando as providências até hoje.

                     Pois bem. As outras colombianas escreveram novamente para a universidade relatando o acontecido com a aluna.  A Universidade mandou uma carta oficial para a diretora, pedindo explicações. Até esse momento, não sabíamos o que ela tinha, nem se estava sendo bem tratada, não sabíamos nada. Ao receber a carta, a diretora, colocou-a em discussão durante um "common meeting" (uma assembléia geral) que ocorre todas as quintas feiras à noite. A carta foi o último assunto do dia. Antes, foram abordados assuntos  como a lavagem dos pratos, horário de funcionamento da lavanderia, atividades culturais para o sábado à noite, e um assunto que demorou uma meia hora foi a morte das galinhas. A essa altura, estávamos todos revoltados! A menina no hospital, gravemente doente, e a gente falando sobre a doença das galinhas!

                      Enfim, o último assunto. Era a carta que ela disse que deveríamos responder em conjunto, porque somos uma equipe! Que absurdo! Muito espertamente, usando palavras muito bem escolhidas, pensou que pudesse nos enrolar, dizendo que a responsabilidade era de todos, porque trabalhamos juntos,  somos  um time, devemos fazer tudo juntos, inclusive  responder a carta. Num primeiro momento, ninguém disse nada, tal foi o espanto, diante dessa afirmação! Mas aos poucos aconteceu uma fala e outra e outra, até que a italiana disse tudo, bem claramente:
                      - Estamos todos indignados com o desamparo que essa menina sofreu! Não teve ajuda de ninguém, precisou o hóspede do hotel levá-la ao médico, e não houve nenhuma informação oficial, sobre a doença dela! Ficamos sabendo de notícias por meio de telefonemas das colegas para a Colômbia, ou para o professor, diretoria não nos explica nada, e agora voce quer nos transferir a responsabilidade pela segurança de sua aluna? Estamos todos inseguros aqui. Se alguém quebra a perna, a escola não tem dinheiro para o taxi? E remédios vencidos, na caixa de primeiros socorros?
                       A diretora ficou muda e então foi uma avalanche de falas. Falavam mais aqueles que dominam  bem o inglês, eu não sou capaz de reproduzir as palavras, mas o sentido era esse: todos nós ficamos indignados com o comportamento da escola, amedrontados com a falta de segurança, e principalmente revoltados com o fato de a diretora não ter  manifestado nenhuma preocupação com a saúde da aluna, mas estava preocupadíssima com a resposta à carta que deveria resgatar o bom nome da escola. Achamos que se não fosse a carta, o fato não seria nem mencionado!
                      Nessa hora, manifestou-se o aluno indiano, que mora em Los Angeles e fala inglês perfeito, fez um discurso dizendo que se ela não sabia responder a carta, nós até poderíamos ajudá-la
(ajuda dos universitários, rs rs rs), mas a responsabilidade era dela, nós não nos sentíamos responsáveis de maneira nenhuma. O fato de sermos uma equipe, não significa que, temos que responder pela segurança ou pela saúde dos alunos. Essa é uma tarefa da diretoria.
                     Ela teve que engolir tudo quietinha. Eu estava sentada perto dela. Ela estava lívida, suas mãos tremiam. Mas não perdeu a capacidade de falar bonito. Disse que as coisas acontecem e servem pra gente aprender com os erros... Depois pediu para o indiano e para mim que ajudássemos na resposta. Sentamos em uma mesa, todos os professores, o indiano e eu e ajudamos na resposta da carta. Ela respondeu a todas as peguntas feitas, honestamente.
                     Porém, o estrago foi feito. Acho que a Universidade da Colômbia nunca mais vai mandar alunos pra cá. E a perda da confiança e de prestígio e a decepção entre os alunos, foi enorme.
                     Como ela quer nos ensinar a mudar o mundo, se não se importa com uma aluna doente?
                     No dia seguinte, a diretora foi ao hospital, visitar sua aluna doente. E soubemos pelo engenheiro  que a colombiana estava com leptospirose.
                     Dias depois, ela melhorou, teve alta e voltou. Não houve nenhum gesto da diretora no sentido de preparar o local para receber uma convalescente da forma mais grave de leptospirose. Nós limpamos o seu quarto, a outra colombiana ficou cuidando dela, como se fosse enfermeira. E graças a Deus, ela é jovem e forte, está se recuperando bem, já voltou às atividades e está tomando os remédios direitinho. Devo mencionar que o nosso professor venezuelano foi o único a se preocupar com ela, acompanhou-a nos quatro dias de hospital, esteve presente em todas as consultas médicas, tomou todas as providências, ao seu alcance, inclusive dando notícias a família e fazendo as negociações com a seguradora da aluna.

                      O laudo médico, para alegria da diretora, não menciona leptospirose, mas sim virose. E  uma das professoras me disse que estão tranquilos porque não foi o remédio vencido que causou a doença...
                      Então me lembrei que quando perguntei o que fazer em caso de furacão, ela resondeu:
                     - Don't worry! The building has insurance against hurricanes!

                                                                                ***

                     Na nossa primeira aula, depois que ela voltou, o professor teve a tarefa de pedir a todos que mencionassem quais são as providencias que a escola deve  tomar em relação à segurança dos alunos.
                     Falamos um monte. Mas depois, em outra reunião, recebemos instruções de como limpar melhor as coisas. Nada sobre os primeiros socorros, nem sobre a verba de emergência, nem sobre instruções sobre furacões nem terremotos, ou erupções do vulcão. Ou seja, "Tudo como dantes, no quartel de Abrantes".
                                                                                ***

                      Só para prestar um tributo à criatividade dos encarregados da cozinha: hoje teve suco de limão... com pimenta!
                     
                      Voce já pode dizer eu li na tela da
                                                                                 Eulina
                                     

                     




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